A CRISE POLÍTICA QUE NINGUÉM QUER DISCUTIR
País com mais de 90 milhões
de habitantes e com taxas de crescimento médio do PIB superiores a 10% desde o
ano de 2006. Potência africana com maior número de anos de independência
acumulados ao longo da sua história, nunca tendo sido colonizado e/ou ocupado por
períodos superiores a 5 anos, sendo um símbolo de independência do continente. Importante
membro e um dos fundadores da ONU, sendo um dos “bons exemplos” do continente
no sentido da luta pela preservação e difusão dos valores da organização num
continente com documentados episódios de desrespeito por direitos e liberdades
humanas fundamentais. Fulcral dinamizador de um novo projecto de
reposicionamento do continente africano nos palcos internacionais (sobretudo
pela “força” de que dispõe na União Africana) em matéria económica e
fundamentalmente política.Até aqui parece estarmos perante um retrato francamente
animador de um país que tem vindo a afirmar-se como uma das maiores potências
não petrolíferas do continente, para além de ser um importante aliado da
chamada coligação internacional na estabilização do Corno de África, uma das
zonas mais problemáticas do globo desde a viragem do milénio. O que acontece,
porém, é que não corresponde inteiramente à realidade da Etiópia, um país que
tem vindo a cimentar um importante “track
record” externo na hora de
empregar eficazmente os instrumentos diplomáticos e/ou bélicos à sua disposição
(recordem-se intervenções de manutenção de paz bem sucedidas no Burundi, Ruanda
e Libéria, para além da intervenção na Guerra das Coreias), mas que tem, em
virtude da pouco satisfatória acção dos seus governantes, vindo a manchar esse
registo na vertente interna. O conjunto de episódios que melhor ilustra esta
constatação relaciona-se com a instabilidade provocada pela repressão
governativa de mais uma vaga de protestos do grupo étnico Oromo, autóctone da
região Oromia e que corresponde a cerca de um terço da população do país, tendo
esta repressão atingido proporções trágicas nos últimos meses segundo
informações da organização Human Rights Watch (estimam-se entre 80 e 250
mortes, 30000 presos e cerca de 800 desparecidos). Aqui fala-se em “mais uma”
vaga de protestos essencialmente por não se tratar de caso virgem naquilo que tem
sido a alienação progressiva deste grupo étnico por parte das entidades
governativas do país, que insistem em renegar as suas responsabilidades de
pacificação do país e das sua vasta diversidade étnica, acentuando uma evidente
divergência de narrativas entre governantes e governados ao apelidarem de
terroristas ou de dissidentes todos aqueles que se oponham à suprema causa do
crescimento e modernização do país, num clássico caso como tantos outros em que
uma elite governante composta por um grupo étnico minoritário (no caso os
Tigray e Amhara) gere o quotidiano e “decision-making” do país de forma
segregacionista e autoritária. Esta alienação progressiva entende-se em 3
grandes vagas de protestos: Uma vaga no período Abril-Maio de 2014, em grande
parte provocada por movimentos estudantis que reagiam ao “master plan” do
governo de alargamento da capital Addis Ababa até à região de Oromia,
expulsando das suas casas e terras centenas de milhares de Oromos. Uma vaga no
período Novembro 2015- Janeiro 2016, que coincidiu com uma maior falange de
apoio (e ao maior número de mortos e presos políticos) à causa estudantil por
outros grupos étnicos e internacionais, desempenhando a diáspora etíope um
papel fundamental na difusão desta causa, o que culminou no recuo do governo, a
12 de Janeiro, neste plano. Uma terceira vaga, em Fevereiro de 2016, que teve
início na carga policial sobre um grupo em plena festa de casamento e que foi
acusado de propaganda terrorista por estar a ouvir música típica do grupo
étnico Oromo.É justo afirmar que, em termos de intensidade e impacto,
a terceira vaga de protestos está longe de ser a mais significativa, estando as
incidências resultantes da segunda vaga de protestos associadas ao período de
maior instabilidade social e política no país. No entanto, e como James Jeffrey
(BBC) faz questão de apontar, esta pode muito bem ser a vaga que mais questões
e elementos associados à própria “fisionomia” do regime coloca em causa. Em
grande medida por 3 grandes razões: A primeira razão prende-se com o factor
desgaste, já que se torna cada vez mais evidente que uma solução que envolva
diálogo e verdadeira cooperação entre o grupo étnico e as entidades
governativas está afastada, sobretudo a partir do momento em que o governo
recorre à repressão de protestos maioritariamente pacíficos para fazer valer a
“sua” ordem interna, o que nos leva a equacionar se esta terceira vaga não
constituirá parte de um maior todo e que caminha para a guerra civil. Como
segunda razão temos a ideia de que estes protestos têm vindo a fazer emergir
aquela que é a verdadeira “agenda” do governo, que se tem manifestado sob a
forma de uma intensa repressão policial escamoteada em nome da “ameaça
terrorista” no país (recorde-se o que disse o porta-voz do governo Getachew Reda
a propósito: “the protests were hijacked by people looking to incite
violence(...) the security forces have faced organised armed gangs burning down
buildings belonging to private citizens, along with government
installations"), o que largamente contrasta com dados da Human Rights
Watch (que retrata os protestos como “largelly peaceful”) ou do grupo Global
Voices, que reporta a maioria das mortes como sendo à queima roupa, sendo 70%
dos falecidos estudantes do sexo masculino (justamente aqueles que fomentaram a
primeira vaga de protestos em 2014), para além de condenar a prisão de
elementos pertencentes ao Oromo Federalist Congress Party, o maior partido com
representação parlamentar da região. A terceira e última razão prende-se
essencialmente com a ideia de que aquilo que está em jogo não é a alienação
progressiva dos Oromo per si, no
sentido em que estes protestos nos levam a reflectir em torno de outros
elementos de ordem interna como o falhanço do federalismo integracionista que
tirou o país das “garras” da auto-proclamada junta marxista em 1991, na medida
em que foram feitas promessas pela Frente de libertação do país que não foram
cumpridas, a marginalização económica de franjas da população (onde se encaixam
os Oromo) e a corrupção, também ela escamoteada e “branqueada” em função da tal
ambição de desenvolvimento e progresso a qualquer custo.Não deixa de ser curioso, depois de tudo aquilo que foi
dito, que a resposta ocidental se materialize numa apologia do país nas
vertentes em que lhe “interessa”, entenda-se, na vertente do crescimento
económico e do combate à al-Shabab, enviando fundos para esse efeito, sem
fazerem muitas vezes o esforço de “seguir o dinheiro” e/ou de observarem a sua
aplicação. Porque ao que parece estas são mesmo as únicas preocupações actuais
da coligação internacional com este e outros países africanos, sendo esta crise
uma de muitas que simplesmente ninguém quer discutir.
Luis Ermida
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