segunda-feira, 14 de março de 2016

A CRISE POLÍTICA QUE NINGUÉM QUER DISCUTIR

País com mais de 90 milhões de habitantes e com taxas de crescimento médio do PIB superiores a 10% desde o ano de 2006. Potência africana com maior número de anos de independência acumulados ao longo da sua história, nunca tendo sido colonizado e/ou ocupado por períodos superiores a 5 anos, sendo um símbolo de independência do continente. Importante membro e um dos fundadores da ONU, sendo um dos “bons exemplos” do continente no sentido da luta pela preservação e difusão dos valores da organização num continente com documentados episódios de desrespeito por direitos e liberdades humanas fundamentais. Fulcral dinamizador de um novo projecto de reposicionamento do continente africano nos palcos internacionais (sobretudo pela “força” de que dispõe na União Africana) em matéria económica e fundamentalmente política.Até aqui parece estarmos perante um retrato francamente animador de um país que tem vindo a afirmar-se como uma das maiores potências não petrolíferas do continente, para além de ser um importante aliado da chamada coligação internacional na estabilização do Corno de África, uma das zonas mais problemáticas do globo desde a viragem do milénio. O que acontece, porém, é que não corresponde inteiramente à realidade da Etiópia, um país que tem vindo a cimentar um importante “track record” externo na hora de empregar eficazmente os instrumentos diplomáticos e/ou bélicos à sua disposição (recordem-se intervenções de manutenção de paz bem sucedidas no Burundi, Ruanda e Libéria, para além da intervenção na Guerra das Coreias), mas que tem, em virtude da pouco satisfatória acção dos seus governantes, vindo a manchar esse registo na vertente interna. O conjunto de episódios que melhor ilustra esta constatação relaciona-se com a instabilidade provocada pela repressão governativa de mais uma vaga de protestos do grupo étnico Oromo, autóctone da região Oromia e que corresponde a cerca de um terço da população do país, tendo esta repressão atingido proporções trágicas nos últimos meses segundo informações da organização Human Rights Watch (estimam-se entre 80 e 250 mortes, 30000 presos e cerca de 800 desparecidos). Aqui fala-se em “mais uma” vaga de protestos essencialmente por não se tratar de caso virgem naquilo que tem sido a alienação progressiva deste grupo étnico por parte das entidades governativas do país, que insistem em renegar as suas responsabilidades de pacificação do país e das sua vasta diversidade étnica, acentuando uma evidente divergência de narrativas entre governantes e governados ao apelidarem de terroristas ou de dissidentes todos aqueles que se oponham à suprema causa do crescimento e modernização do país, num clássico caso como tantos outros em que uma elite governante composta por um grupo étnico minoritário (no caso os Tigray e Amhara) gere o quotidiano e “decision-making” do país de forma segregacionista e autoritária. Esta alienação progressiva entende-se em 3 grandes vagas de protestos: Uma vaga no período Abril-Maio de 2014, em grande parte provocada por movimentos estudantis que reagiam ao “master plan” do governo de alargamento da capital Addis Ababa até à região de Oromia, expulsando das suas casas e terras centenas de milhares de Oromos. Uma vaga no período Novembro 2015- Janeiro 2016, que coincidiu com uma maior falange de apoio (e ao maior número de mortos e presos políticos) à causa estudantil por outros grupos étnicos e internacionais, desempenhando a diáspora etíope um papel fundamental na difusão desta causa, o que culminou no recuo do governo, a 12 de Janeiro, neste plano. Uma terceira vaga, em Fevereiro de 2016, que teve início na carga policial sobre um grupo em plena festa de casamento e que foi acusado de propaganda terrorista por estar a ouvir música típica do grupo étnico Oromo.É justo afirmar que, em termos de intensidade e impacto, a terceira vaga de protestos está longe de ser a mais significativa, estando as incidências resultantes da segunda vaga de protestos associadas ao período de maior instabilidade social e política no país. No entanto, e como James Jeffrey (BBC) faz questão de apontar, esta pode muito bem ser a vaga que mais questões e elementos associados à própria “fisionomia” do regime coloca em causa. Em grande medida por 3 grandes razões: A primeira razão prende-se com o factor desgaste, já que se torna cada vez mais evidente que uma solução que envolva diálogo e verdadeira cooperação entre o grupo étnico e as entidades governativas está afastada, sobretudo a partir do momento em que o governo recorre à repressão de protestos maioritariamente pacíficos para fazer valer a “sua” ordem interna, o que nos leva a equacionar se esta terceira vaga não constituirá parte de um maior todo e que caminha para a guerra civil. Como segunda razão temos a ideia de que estes protestos têm vindo a fazer emergir aquela que é a verdadeira “agenda” do governo, que se tem manifestado sob a forma de uma intensa repressão policial escamoteada em nome da “ameaça terrorista” no país (recorde-se o que disse o porta-voz do governo Getachew Reda a propósito: “the protests were hijacked by people looking to incite violence(...) the security forces have faced organised armed gangs burning down buildings belonging to private citizens, along with government installations"), o que largamente contrasta com dados da Human Rights Watch (que retrata os protestos como “largelly peaceful”) ou do grupo Global Voices, que reporta a maioria das mortes como sendo à queima roupa, sendo 70% dos falecidos estudantes do sexo masculino (justamente aqueles que fomentaram a primeira vaga de protestos em 2014), para além de condenar a prisão de elementos pertencentes ao Oromo Federalist Congress Party, o maior partido com representação parlamentar da região. A terceira e última razão prende-se essencialmente com a ideia de que aquilo que está em jogo não é a alienação progressiva dos Oromo per si, no sentido em que estes protestos nos levam a reflectir em torno de outros elementos de ordem interna como o falhanço do federalismo integracionista que tirou o país das “garras” da auto-proclamada junta marxista em 1991, na medida em que foram feitas promessas pela Frente de libertação do país que não foram cumpridas, a marginalização económica de franjas da população (onde se encaixam os Oromo) e a corrupção, também ela escamoteada e “branqueada” em função da tal ambição de desenvolvimento e progresso a qualquer custo.Não deixa de ser curioso, depois de tudo aquilo que foi dito, que a resposta ocidental se materialize numa apologia do país nas vertentes em que lhe “interessa”, entenda-se, na vertente do crescimento económico e do combate à al-Shabab, enviando fundos para esse efeito, sem fazerem muitas vezes o esforço de “seguir o dinheiro” e/ou de observarem a sua aplicação. Porque ao que parece estas são mesmo as únicas preocupações actuais da coligação internacional com este e outros países africanos, sendo esta crise uma de muitas que simplesmente ninguém quer discutir. 


 Luis Ermida


 Fontes:


http://www.bbc.co.uk/news/world-africa-35749065http://www.bbc.co.uk/news/world-africa-35325536http://atlantablackstar.com/2016/01/11/oromoprotests-what-you-need-to-know-about-ethiopias-crisis-that-no-one-is-talking-about/https://www.hrw.org/news/2016/01/22/ethiopias-invisible-crisishttp://www.bbc.com/news/world-africa-13349399http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.KD.ZG/countries/ET-MZ-TZ-ZM?display=graph


Sem comentários:

Enviar um comentário