terça-feira, 29 de março de 2016

Quando a cooperação só tem propósitos geopolíticos

        Historicamente, ser um “landlock country” tem tendência a prejudicar gravemente as hipóteses de crescimento e de desenvolvimento de qualquer país, já que inibe o seu livre acesso à pesca e às trocas comerciais pela via marítima, tradicionalmente mais ergonómicas do que pela via terrestre ou aérea, para além de significar uma submissão dos seus interesses aos das potências marítimas suas vizinhas (Paul Collier, no seu livro The Bottom Billion, expõe brilhantemente a questão ao afirmar que "If you are coastal, you serve the world; if you are landlocked, you serve your neighbors").  Quando se junta a este problema um enquadramento geomorfológico desfavorável (região dos Himalaias) e o facto de as duas únicas potências com acesso ao mar e com as quais estabelece fronteira serem a China e a Índia, o observador comum seria naturalmente forçado a descartar toda e qualquer possibilidade de desenvolvimento e afirmação internacional de um país nestas condições, tal é a forma como estes constrangimentos de natureza estrutural se sobrepõem a questões de natureza conjuntural.
            No entanto, casos como o do Nepal continuam a desafiar o apriorismo de juízos e crenças desse tipo de observador, principalmente por meio da escolha de dinâmicas que procurem valorizar importância do país no seio de um tão delicado confronto entre potências de dimensão largamente superior à sua.  O mais recente capítulo desta luta pela escolha da dinâmica que melhor favorece os interesses do país em questão evidencia-se à margem das conversações bilaterais com a China no seguimento da visita do PM nepalês KP Oli a Pequim, na qual se ultimaram imporantes detalhes daquela que parece ser a “planta” da maior mudança do paradigma de política externa do país desde os anos 50 do séc.XX, altura em que este assinou o Treaty of Peace and Friendship que marcou o advento de décadas de cooperação com a congénere indiana.            

        Esta visita oficial teve como resultado a assinatura de 10 acordos que visam o aprofundamento de relações entre as 2 potências, que se compreendem desde a cooperação em matéria de transportes/comunicações (com a planificação de uma ligação ferroviária via Tibete entre a China e o Nepal e outra que conecte directamente as 3 principais cidades do país), um plano da criação de um regime energético especial entre os 2 países que vise suprir as necessidades energéticas do Nepal (o governo nepalês pretende importar da China cerca de 33% das 1,8 milhões de toneladas/ano de produtos petrolíferos consumidos no país ao abrigo de uma “tarifa especial” acordada entre os dois Estados), o estudo da viabilidade de um acordo de comércio livre entre os dois países, a concessão de linhas de crédito para a construção de um aeroporto na região turística de Pokhara e de uma ponte sobre o rio Hilsa no noroeste do país (que funcionaria como uma “border bridge”), a cooperação na exploração petrolífera e do gás natural e a instalação de painéis solares em cerca de 32 000 casas do país, para além de, e mais importante (no imediato), o acesso directo do Nepal às estruturas portuárias chinesas, numa tentativa de alargar o leque de opções à disposição do país, que se resumiam às estruturas portuárias de Calcutá, no extremo oriental da Índia.  Atendendo àquilo que aqui foi dito, porque razão se fala, então, na maior mudança de paradigma desde os anos 50? A resposta a esta questão terá que ser compreendida mediante 3 grandes pilares: o pilar do contexto interno do país; o pilar do estado das relações do Nepal com a Índia; e o pilar assente no “trunfo” geopolítico que representa para a China esta aproximação em relação ao Nepal, partindo do pressuposto de que as relações sino-indianas, embora longe de serem antagónicas, já conheceram melhores dias.
            No que concerne ao contexto interno, o percurso do país está longe de ser harmonioso (terramotos, guerras civis, afirmação e queda de regimes políticos, animosidade perante entidades governativas que insistem em não respeitar a diversidade étnica do país), sendo o último capítulo deste titubeante caminho o da transição política de uma Monarquia Constitucional para uma República, consolidada em Setembro de 2015 e após redacção e aprovação de uma Constituição que estava em standby desde o ano de 2008.  O contexto interno do país encontra amplo fundamento no pilar das relações entre o Nepal e a Índia, que tanto têm de pacífico e consensual (afinidades linguísticas, religiosas, culturais e interpessoais, numa relação descrita pelos responsáveis indianos como “unique and special”) como de hostil e contraditório, tendo para este facto contribuído a concepção entre alguma elite nepalesa de que a Índia não conta com o país como parceiro igual, sendo antes um meio para alcançar os seus próprios objectivos, silenciando todo e qualquer manifesto contrário aos seus interesses (veja-se a questão das disputas territoriais em Kalapani) e manipulando a seu belo prazer sucessivos governantes do Nepal contra a vontade expressa do seu povo.  O carácter paradoxal destas relações ao longo do tempo é bem sistematizado pelo ilustre diplomata Rakesh Sood, quando contrapõe a noção de uma “proximidade especial que implica uma complexidade de relações que deverão ser geridas com o maior dos cuidados” à ideia de uma relação que atingiu um “mínimo histórico”, em grande parte garantida por uma acentuada divergência de narrativas de parte a parte na altura de fornecer explicações sobre episódios como o do bloqueio das fronteiras entre os dois países, que levou a uma escassez histórica de medicamentos, produtos alimentares e petrolíferos que durou desde a aprovação da constituição até ao mês de Fevereiro.  O último pilar desta discussão entende-se por meio da dinâmica de poderes nesta região, onde o Nepal tem servido como “amortecedor geográfico” de diversas disputas e tensões entre chineses e indianos nas últimas décadas. Independentemente da pouca importância geoestratégica de médio-longo prazo que o Nepal possa eventualmente acarretar, o que é facto é que qualquer mudança de paradigma de política externa de países naquela região mais facilmente constitui um ganho do que uma perda para a congénere chinesa, tal é a “desconfiança” generalizada gerada pela Índia em relação aos seus vizinhos (veja-se casos como o Paquistão, Bangladesh e Sri Lanka) – para além do conjunto de benefícios que uma parceria económica com a China representa para qualquer país - .  Assim, e mesmo atendendo ao facto de a China estar longe de ter a influência que a Índia ainda tem sobre o Nepal e de os representantes chineses assegurarem que o futuro destes países se faz em conjunto e não em separado (Hou, 2016), e não ignorando, tal como escreve o Kathmandu Post, que “the new trade and transit treaties with China come as a big boost to Nepali psyche”, o que é verdade é que o ascendente chinês na região não só é inegável como aumenta brutalmente com este “major geopolitical shift”, como escreve o República.
            Trata-se, desta feita, de mais uma situação em que o maquiavelismo geoestratégico ultrapassou o altruísmo perante uma nação em dificuldades. Trata-se, pois, de mais um exemplo em que a cooperação só teve propósitos geopolíticos.    


 Luis Ermida

Fontes:

http://www.hindustantimes.com/world/nepal-china-sign-10-deals-including-trade-and-transit/story-8aIBjPnHhrHUJ8e54gTwIL.html

http://kathmandupost.ekantipur.com/news/2016-03-22/nepal-signs-deal-to-gain-access-to-chinese-ports.html

http://www.scmp.com/news/china/diplomacy-defence/article/1928751/nepal-and-china-agree-deal-allow-landlocked-nation-sea

https://www.youtube.com/watch?v=oF0wv6W17Wk&index=5&list=PLwYR7WJw1-QWrdsFsVFcUpkJQDmoPJzPG

Collier, Paul (2007). The Bottom Billion, pp. 56, 57 

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