Quando a cooperação só tem propósitos geopolíticos
Historicamente, ser um
“landlock country” tem tendência a prejudicar gravemente as hipóteses de
crescimento e de desenvolvimento de qualquer país, já que inibe o seu livre acesso
à pesca e às trocas comerciais pela via marítima, tradicionalmente mais
ergonómicas do que pela via terrestre ou aérea, para além de significar uma
submissão dos seus interesses aos das potências marítimas suas vizinhas (Paul
Collier, no seu livro The Bottom Billion,
expõe brilhantemente a questão ao afirmar que "If you are coastal,
you serve the world; if you are landlocked, you serve your neighbors"). Quando se junta a este problema um
enquadramento geomorfológico desfavorável (região dos Himalaias) e o facto de
as duas únicas potências com acesso ao mar e com as quais estabelece fronteira
serem a China e a Índia, o observador comum seria naturalmente forçado a
descartar toda e qualquer possibilidade de desenvolvimento e afirmação
internacional de um país nestas condições, tal é a forma como estes constrangimentos
de natureza estrutural se sobrepõem a questões de natureza conjuntural.
No entanto, casos como o do Nepal
continuam a desafiar o apriorismo de juízos e crenças desse tipo de observador,
principalmente por meio da escolha de dinâmicas que procurem valorizar importância
do país no seio de um tão delicado confronto entre potências de dimensão
largamente superior à sua. O mais
recente capítulo desta luta pela escolha da dinâmica que melhor favorece os
interesses do país em questão evidencia-se à margem das conversações bilaterais
com a China no seguimento da visita do PM nepalês KP Oli a Pequim, na qual se ultimaram
imporantes detalhes daquela que parece ser a “planta” da maior mudança do
paradigma de política externa do país desde os anos 50 do séc.XX, altura em que
este assinou o Treaty of Peace and Friendship que marcou o advento de décadas
de cooperação com a congénere indiana.
Esta visita oficial teve como
resultado a assinatura de 10 acordos que visam o aprofundamento de relações
entre as 2 potências, que se compreendem desde a cooperação em matéria de
transportes/comunicações (com a planificação de uma ligação ferroviária via
Tibete entre a China e o Nepal e outra que conecte directamente as 3 principais
cidades do país), um plano da criação de um regime energético especial entre os
2 países que vise suprir as necessidades energéticas do Nepal (o governo
nepalês pretende importar da China cerca de 33% das 1,8 milhões de
toneladas/ano de produtos petrolíferos consumidos no país ao abrigo de uma
“tarifa especial” acordada entre os dois Estados), o estudo da viabilidade de
um acordo de comércio livre entre os dois países, a concessão de linhas de
crédito para a construção de um aeroporto na região turística de Pokhara e de
uma ponte sobre o rio Hilsa no noroeste do país (que funcionaria como uma
“border bridge”), a cooperação na exploração petrolífera e do gás natural e a
instalação de painéis solares em cerca de 32 000 casas do país, para além de, e
mais importante (no imediato), o acesso directo do Nepal às estruturas
portuárias chinesas, numa tentativa de alargar o leque de opções à disposição
do país, que se resumiam às estruturas portuárias de Calcutá, no extremo
oriental da Índia. Atendendo àquilo que
aqui foi dito, porque razão se fala, então, na maior mudança de paradigma desde
os anos 50? A resposta a esta questão terá que ser compreendida mediante 3
grandes pilares: o pilar do contexto interno do país; o pilar do estado das
relações do Nepal com a Índia; e o pilar assente no “trunfo” geopolítico que
representa para a China esta aproximação em relação ao Nepal, partindo do
pressuposto de que as relações sino-indianas, embora longe de serem
antagónicas, já conheceram melhores dias.
No que concerne ao contexto interno,
o percurso do país está longe de ser harmonioso (terramotos, guerras civis,
afirmação e queda de regimes políticos, animosidade perante entidades
governativas que insistem em não respeitar a diversidade étnica do país), sendo
o último capítulo deste titubeante caminho o da transição política de uma
Monarquia Constitucional para uma República, consolidada em Setembro de 2015 e
após redacção e aprovação de uma Constituição que estava em standby desde o ano de 2008. O contexto interno do país encontra amplo
fundamento no pilar das relações entre o Nepal e a Índia, que tanto têm de
pacífico e consensual (afinidades linguísticas, religiosas, culturais e
interpessoais, numa relação descrita pelos responsáveis indianos como “unique
and special”) como de hostil e contraditório, tendo para este facto contribuído
a concepção entre alguma elite nepalesa de que a Índia não conta com o país
como parceiro igual, sendo antes um meio para alcançar os seus próprios
objectivos, silenciando todo e qualquer manifesto contrário aos seus interesses
(veja-se a questão das disputas territoriais em Kalapani) e manipulando a seu
belo prazer sucessivos governantes do Nepal contra a vontade expressa do seu
povo. O carácter paradoxal destas
relações ao longo do tempo é bem sistematizado pelo ilustre diplomata Rakesh
Sood, quando contrapõe a noção de uma “proximidade especial que implica uma
complexidade de relações que deverão ser geridas com o maior dos cuidados” à ideia
de uma relação que atingiu um “mínimo histórico”, em grande parte garantida por
uma acentuada divergência de narrativas de parte a parte na altura de fornecer
explicações sobre episódios como o do bloqueio das fronteiras entre os dois
países, que levou a uma escassez histórica de medicamentos, produtos
alimentares e petrolíferos que durou desde a aprovação da constituição até ao
mês de Fevereiro. O último pilar desta
discussão entende-se por meio da dinâmica de poderes nesta região, onde o Nepal
tem servido como “amortecedor geográfico” de diversas disputas e tensões entre
chineses e indianos nas últimas décadas. Independentemente da pouca importância
geoestratégica de médio-longo prazo que o Nepal possa eventualmente acarretar,
o que é facto é que qualquer mudança de paradigma de política externa de países
naquela região mais facilmente constitui um ganho do que uma perda para a
congénere chinesa, tal é a “desconfiança” generalizada gerada pela Índia em
relação aos seus vizinhos (veja-se casos como o Paquistão, Bangladesh e Sri
Lanka) – para além do conjunto de benefícios que uma parceria económica com a
China representa para qualquer país - .
Assim, e mesmo atendendo ao facto de a China estar longe de ter a influência
que a Índia ainda tem sobre o Nepal e de os representantes chineses assegurarem
que o futuro destes países se faz em conjunto e não em separado (Hou, 2016), e
não ignorando, tal como escreve o Kathmandu
Post, que “the new trade and transit treaties with China come as a big
boost to Nepali psyche”, o que é verdade é que o ascendente chinês na região
não só é inegável como aumenta brutalmente com este “major geopolitical shift”,
como escreve o República.
Trata-se, desta feita, de mais uma situação em que o
maquiavelismo geoestratégico ultrapassou o altruísmo perante uma nação em
dificuldades. Trata-se, pois, de mais um exemplo em que a cooperação só teve
propósitos geopolíticos.
Luis
Ermida
Fontes:
http://www.hindustantimes.com/world/nepal-china-sign-10-deals-including-trade-and-transit/story-8aIBjPnHhrHUJ8e54gTwIL.html
http://kathmandupost.ekantipur.com/news/2016-03-22/nepal-signs-deal-to-gain-access-to-chinese-ports.html
http://www.scmp.com/news/china/diplomacy-defence/article/1928751/nepal-and-china-agree-deal-allow-landlocked-nation-sea
https://www.youtube.com/watch?v=oF0wv6W17Wk&index=5&list=PLwYR7WJw1-QWrdsFsVFcUpkJQDmoPJzPG
Collier, Paul (2007). The Bottom
Billion, pp. 56, 57
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