Niall
Ferguson, no livro A Ascensão do Dinheiro (uma História Financeira do Mundo),
retrata a Argentina como um país “outrora muito próspero”, referindo que “em
1913 (...), era um dos dez países mais ricos do mundo”, sendo que “fora do
mundo anglófono, o seu PIB per capita só era ultrapassado pelo da Suiça,
Bélgica, Países Baixos e Dinamarca”, em grande parte devido ao facto de, “entre
1870 e 1913, a economia ter crescido mais rapidamente do que nos EUA ou na
Alemanha”, factores que justificavam plenamente a “romantização” do país (e de
cidades como a de Buenos Aires) como um dos oásis do hemisfério sul. No entanto, não é ao acaso que aqui se refere
este horizonte temporal e nenhum outro do séc.XX, já que a história argentina
do ano 1913 em diante, como o autor faz questão de explanar, “é uma lição
vívida de que todos os recursos do mundo podem ser reduzidos a zero por uma má
gestão financeira”. Ao ponto de se
afirmar que, ao pecúlio argentino neste horizonte temporal, se somam três
períodos inflaccionários de dois dígitos (1945-1952, 1956-1968 e 1970-1974) e
um grande período de três/quatro dígitos entre 1975-1990, com o auge anual a
fixar-se nos 5000% em 1989, períodos de incumprimento em 1982 e 1989, uma
“oligarquia de proprietários latifundiários que procurou basear a economia do
país nas exportações agrícolas para o mundo anglófono” sem conciliar os
rendimentos daí obtidos com a modernização dos diversos sectores económicos (em
termos de meios e factores de produção) e sucessivas intervenções militares na
política - onde pontificam quatro governos provisórios e dois permanentes
segundo um modelo burocrático-autoritário, na sequência de seis golpes de
Estado verificados -, tendo a guerra com a Grã-Bretanha pelas Malvinas tido
importância significativa (embora não decisiva, já que é da má gestão de
recursos que adveio da instabilidade governativa de um país outrora próspero,
numa tentativa de experimentar toda e qualquer solução de toda e qualquer forma
– recordem –se as sucessivas desvalorizações de moeda entre 1955 e 1966, como
forma de aceder aos interesses da agricultura e indústria ou a intervenção do
“super ministro” Domingo Cavallo em 1991, quando “lança” o peso convertible, a
sexta moeda do país no século, numa tentativa de travar a inflação e de fazer
corresponder 1 dólar americano a 1 peso, para além de conduzir um importante
“impulso privatizador” no país - , e da “constelação de diversas forças sociais
– como grupos de interesse de produtores e sindicatos, oligarcas e os
descamizados (“os sem camisa”) – sem interesse na estabilização dos preços e
salários” que se forma este retrato de “mau desempenho” do país, e não dos
encargos resultantes de intervenções armadas mal sucedidas per se).
Uma
atenta reflexão acerca do que aqui foi exposto orienta-nos para o entendimento
de que a bancarrota de 2001 surge, assim, como o culminar de um século
desastroso para o país, fazendo mais que nunca valer a velha máxima de que mais
que “meras” questões económico-financeiras, a inflação e política monetária
(assim como comercial) de um país são questões políticas. Deste modo, da mesma
forma que a incompetência e algum dolo no âmbito da gestão e administração
governativas conduziram o país a uma dívida global de 91,2 mil milhões de
euros, aos quais se juntaram cerca de 28 mil milhões em juros vencidos não
pagos, a uma brutal depreciação da moeda para 1/4 do seu valor, a uma crise do
sector bancário que levou à restrição de fluxos de capitais (e inclusivamente
restrições de levantamentos, um pouco à imagem da Grécia, no ano passado), a
taxas de pobreza agravada correspondentes a 1/3 da população e à alienação de
grande parte do património do Estado (o caso da YPF é paradigmático a este
propósito) - da qual as autoridades internacionais não estão ilibadas, já que
optaram por continuar a conceder crédito a um país sem exigir reformas fiscais
e económicas significativas (recorde-se que, nesse mesmo ano de 2001, o FMI já
tinha concedido dois resgates ao país, em Janeiro e Maio) - também a solução
para uma crise (aparentemente) irresolúvel deverá partir das lideranças
políticas que sucederam (e sucederão) a este episódio que marca indelevelmente
a história argentina.
Sinais positivos em relação às
intenções destas mesmas lideranças tardaram em fazer-se notar, datando de 2005
a tomada de posição oficial do país em relação aos seus credores, após falhanço
de sucessivos programas de estabilização que acentuaram a contração económica
do país. Este era sobretudo um plano de reestruturação, como refere Jorge
Nascimento Rodrigues, que “oferecia as piores condições possíveis à esmagadora
maioria dos detentores dos títulos da dívida”, em grande medida, nas palavras
do mesmo, pelo “repúdio dos juros em atraso e uma troca de títulos oferecendo
25% a 35% do valor original”, o que coincidia não só com a própria “bandeira”
do partido Justicialista (neoperonista) como com a prioridade de reembolso do
Estado argentino dos empréstimos contraídos junto do FMI, destinatário
prioritário desta primeira fase da reestruturação. Embora tivesse fortes
possibilidades de ser bem-sucedido (mesmo considerando as condições
supra-mencionadas), este primeiro esforço de reestruturação acaba por não ser
bem aceite por cerca de 1/4 dos credores, que reclamam o reembolso da
totalidade do que investiram (mais juros) e ameaçam recorrer às mais altas
instâncias judiciais internacionais para fazerem valer a sua posição. A
resposta, que a partir de então faria parte das convicções-base do
Kirchnerismo, passaria por pura e simplesmente negar as obrigações perante este
grupo de “abutres” (vulture funds) que procuravam lucrar com títulos de dívida
que obtiveram por ínfimas percentagens do dólar americano, numa resposta que
gerou reconhecimento e simpatia por parte de muitos líderes internacionais e
que iniciou a “campanha” por um sistema universal de reestruturação da dívida
de Estados soberanos e de combate àquilo que Cristina Kirchner apelidava de
“terrorismo económico e financeiro”. Entre o primeiro esforço de 2005 e o ano
de 2016, houve continuação, ainda que nem sempre pacífica, da reestruturação de
boa parte das parcelas restantes de dívida, tendo o governo argentino chegado a
acordo com 92,4% dos detentores de títulos de dívida. Aqueles que se mantiveram
firmes na convicção de que receberiam a totalidade daquilo que reclamavam, os
verdadeiros “abutres entre os abutres” (se adoptarmos o léxico de Kirchner),
viram a sua espera ser parcialmente recompensada, nesta última semana, com a
notícia de que ambas as câmaras do Congresso argentino aprovaram o projecto de
lei que formaliza a alocação de fundos para o reembolso de 4,65 mil milhões de
dólares a este conjunto de credores.
É importante percepcionar que esta
mudança paradigmática da postura do país em relação aos “abutres” não é
inesperada, já que é resultado directo da própria mudança na gestão governativa
do país desde Dezembro de 2015, altura em que foi eleito o actual presidente,
Maurício Macri. Não obstante tudo aquilo que aqui foi exposto, e embora
constitua aquilo que muitos poderão chamar de sinal de fraqueza do país perante
actores não-estatais, o que é facto é que este princípio de acordo (que tem até
dia 14 de Abril para ser “revertido”) acaba por ser vantajoso, no curto prazo,
para ambas as partes: para os credores ou holdouts,
que acabam por obter uma valorização brutal sobre um produto financeiro
altamente depreciado na altura da aquisição; para o Estado argentino, que, e
assumindo que cumpre este acordo, verá serem-lhe “levantadas” as restrições de
financiamento junto dos mercados internacionais, regressando à “dança dos
mercados”, e abandonará o estatuto de “Estado pária” que o assola há mais de
década e meia.
Luís Ermida
Fontes
Ferguson, Niall A Ascensão do dinheiro – Uma História
Financeira do Mundo (2009), pp.100-106
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