terça-feira, 5 de abril de 2016

O país do tango regressa à dança dos mercados

Niall Ferguson, no livro A Ascensão do Dinheiro (uma História Financeira do Mundo), retrata a Argentina como um país “outrora muito próspero”, referindo que “em 1913 (...), era um dos dez países mais ricos do mundo”, sendo que “fora do mundo anglófono, o seu PIB per capita só era ultrapassado pelo da Suiça, Bélgica, Países Baixos e Dinamarca”, em grande parte devido ao facto de, “entre 1870 e 1913, a economia ter crescido mais rapidamente do que nos EUA ou na Alemanha”, factores que justificavam plenamente a “romantização” do país (e de cidades como a de Buenos Aires) como um dos oásis do hemisfério sul.  No entanto, não é ao acaso que aqui se refere este horizonte temporal e nenhum outro do séc.XX, já que a história argentina do ano 1913 em diante, como o autor faz questão de explanar, “é uma lição vívida de que todos os recursos do mundo podem ser reduzidos a zero por uma má gestão financeira”.  Ao ponto de se afirmar que, ao pecúlio argentino neste horizonte temporal, se somam três períodos inflaccionários de dois dígitos (1945-1952, 1956-1968 e 1970-1974) e um grande período de três/quatro dígitos entre 1975-1990, com o auge anual a fixar-se nos 5000% em 1989, períodos de incumprimento em 1982 e 1989, uma “oligarquia de proprietários latifundiários que procurou basear a economia do país nas exportações agrícolas para o mundo anglófono” sem conciliar os rendimentos daí obtidos com a modernização dos diversos sectores económicos (em termos de meios e factores de produção) e sucessivas intervenções militares na política - onde pontificam quatro governos provisórios e dois permanentes segundo um modelo burocrático-autoritário, na sequência de seis golpes de Estado verificados -, tendo a guerra com a Grã-Bretanha pelas Malvinas tido importância significativa (embora não decisiva, já que é da má gestão de recursos que adveio da instabilidade governativa de um país outrora próspero, numa tentativa de experimentar toda e qualquer solução de toda e qualquer forma – recordem –se as sucessivas desvalorizações de moeda entre 1955 e 1966, como forma de aceder aos interesses da agricultura e indústria ou a intervenção do “super ministro” Domingo Cavallo em 1991, quando “lança” o peso convertible, a sexta moeda do país no século, numa tentativa de travar a inflação e de fazer corresponder 1 dólar americano a 1 peso, para além de conduzir um importante “impulso privatizador” no país - , e da “constelação de diversas forças sociais – como grupos de interesse de produtores e sindicatos, oligarcas e os descamizados (“os sem camisa”) – sem interesse na estabilização dos preços e salários” que se forma este retrato de “mau desempenho” do país, e não dos encargos resultantes de intervenções armadas mal sucedidas per se).            
Uma atenta reflexão acerca do que aqui foi exposto orienta-nos para o entendimento de que a bancarrota de 2001 surge, assim, como o culminar de um século desastroso para o país, fazendo mais que nunca valer a velha máxima de que mais que “meras” questões económico-financeiras, a inflação e política monetária (assim como comercial) de um país são questões políticas. Deste modo, da mesma forma que a incompetência e algum dolo no âmbito da gestão e administração governativas conduziram o país a uma dívida global de 91,2 mil milhões de euros, aos quais se juntaram cerca de 28 mil milhões em juros vencidos não pagos, a uma brutal depreciação da moeda para 1/4 do seu valor, a uma crise do sector bancário que levou à restrição de fluxos de capitais (e inclusivamente restrições de levantamentos, um pouco à imagem da Grécia, no ano passado), a taxas de pobreza agravada correspondentes a 1/3 da população e à alienação de grande parte do património do Estado (o caso da YPF é paradigmático a este propósito) - da qual as autoridades internacionais não estão ilibadas, já que optaram por continuar a conceder crédito a um país sem exigir reformas fiscais e económicas significativas (recorde-se que, nesse mesmo ano de 2001, o FMI já tinha concedido dois resgates ao país, em Janeiro e Maio) - também a solução para uma crise (aparentemente) irresolúvel deverá partir das lideranças políticas que sucederam (e sucederão) a este episódio que marca indelevelmente a história argentina.
            Sinais positivos em relação às intenções destas mesmas lideranças tardaram em fazer-se notar, datando de 2005 a tomada de posição oficial do país em relação aos seus credores, após falhanço de sucessivos programas de estabilização que acentuaram a contração económica do país. Este era sobretudo um plano de reestruturação, como refere Jorge Nascimento Rodrigues, que “oferecia as piores condições possíveis à esmagadora maioria dos detentores dos títulos da dívida”, em grande medida, nas palavras do mesmo, pelo “repúdio dos juros em atraso e uma troca de títulos oferecendo 25% a 35% do valor original”, o que coincidia não só com a própria “bandeira” do partido Justicialista (neoperonista) como com a prioridade de reembolso do Estado argentino dos empréstimos contraídos junto do FMI, destinatário prioritário desta primeira fase da reestruturação. Embora tivesse fortes possibilidades de ser bem-sucedido (mesmo considerando as condições supra-mencionadas), este primeiro esforço de reestruturação acaba por não ser bem aceite por cerca de 1/4 dos credores, que reclamam o reembolso da totalidade do que investiram (mais juros) e ameaçam recorrer às mais altas instâncias judiciais internacionais para fazerem valer a sua posição. A resposta, que a partir de então faria parte das convicções-base do Kirchnerismo, passaria por pura e simplesmente negar as obrigações perante este grupo de “abutres” (vulture funds) que procuravam lucrar com títulos de dívida que obtiveram por ínfimas percentagens do dólar americano, numa resposta que gerou reconhecimento e simpatia por parte de muitos líderes internacionais e que iniciou a “campanha” por um sistema universal de reestruturação da dívida de Estados soberanos e de combate àquilo que Cristina Kirchner apelidava de “terrorismo económico e financeiro”. Entre o primeiro esforço de 2005 e o ano de 2016, houve continuação, ainda que nem sempre pacífica, da reestruturação de boa parte das parcelas restantes de dívida, tendo o governo argentino chegado a acordo com 92,4% dos detentores de títulos de dívida. Aqueles que se mantiveram firmes na convicção de que receberiam a totalidade daquilo que reclamavam, os verdadeiros “abutres entre os abutres” (se adoptarmos o léxico de Kirchner), viram a sua espera ser parcialmente recompensada, nesta última semana, com a notícia de que ambas as câmaras do Congresso argentino aprovaram o projecto de lei que formaliza a alocação de fundos para o reembolso de 4,65 mil milhões de dólares a este conjunto de credores.
            É importante percepcionar que esta mudança paradigmática da postura do país em relação aos “abutres” não é inesperada, já que é resultado directo da própria mudança na gestão governativa do país desde Dezembro de 2015, altura em que foi eleito o actual presidente, Maurício Macri. Não obstante tudo aquilo que aqui foi exposto, e embora constitua aquilo que muitos poderão chamar de sinal de fraqueza do país perante actores não-estatais, o que é facto é que este princípio de acordo (que tem até dia 14 de Abril para ser “revertido”) acaba por ser vantajoso, no curto prazo, para ambas as partes: para os credores ou holdouts, que acabam por obter uma valorização brutal sobre um produto financeiro altamente depreciado na altura da aquisição; para o Estado argentino, que, e assumindo que cumpre este acordo, verá serem-lhe “levantadas” as restrições de financiamento junto dos mercados internacionais, regressando à “dança dos mercados”, e abandonará o estatuto de “Estado pária” que o assola há mais de década e meia.

Luís Ermida

Fontes
Ferguson, Niall A Ascensão do dinheiro – Uma História Financeira do Mundo (2009), pp.100-106

    

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